sexta-feira, 23 de abril de 2010

Um último discurso

- Você sabe como é morrer?
Foi assim que começou. Ele me perguntava aquilo com uma paciência resignada, um certo tom de monotonia na voz. Era sempre do mesmo jeito, suas perguntas pegavam-me de surpresa, jamais encontrei as respostas corretas. Limitei-me a fitá-lo nos olhos e balançar a cabeça, negativamente. Senti um ímpeto de curiosidade, pude ver, então, que ele escolhia as palavras enquanto tragava seu cigarro, intercalando-o com goles de uma bebida qualquer. Depois de uma longa pausa, acrescentou:
- É como estar em meio à fumaça de um incêndio: primeiro, espalha-se como uma névoa, um pequeno incômodo, que acreditamos logo dissipar-se. Este é o primeiro erro, pois, com o passar do tempo, ela se torna densa, e logo não se pode mais respirar.
Ele falava olhando para o nada, sorrindo com o canto da boca, como se contasse uma piada, ou sei lá. Tudo aquilo me assustava, mas, de certo modo, precisava ouvir mais; queria chegar até o fim. Após alguns instantes, olhou-me fixamente e continuou:
- Instintivamente, nos abaixamos até o ponto onde há uma camada menos espessa. Evitamos olhar para cima, forçamo-nos a acreditar que aquela inquietante sensação de falta de ar irá embora com o tempo. Ah, minha cara, nós somos tão tolos... Quando nos damos conta, estamos rastejando rente ao chão, a cortina de fumaça envolveu-nos completamente, abafando nossos gritos, nossos pedidos agonizantes de ajuda. Sufocamos de forma lenta, invisíveis aos olhos do mundo. Inalamos toda essa imundície cinzenta, e, devaneando pensamentos pútridos, aprendemos desde cedo a morrer sozinhos.
Dito isso, calou-se. Ele levantou, atirando uma nota amassada no balcão e seguiu em direção à saída. Ainda na porta, virou-se, encarando-me com uma expressão cínica, como se pudesse ler meus pensamentos. Sorriu, um riso triste e sem vida, que até hoje me faz acordar no meio da noite, suando frio.
Nunca mais o vi depois disso; soube, meses mais tarde, que ele fora encontrado morto, naquela mesma noite. Alguns dizem que foi por envenenamento, algo propositalmente misturado a uma dose de alcool, embora a causa seja o de menos, uma vez que não anula o óbito em si.
Certas vezes, antes de dormir, penso que ele sabia de toda a verdade, sempre soube. Hoje posso perceber claramente: por trás daquele olhar melancólico, havia a tácita certeza de que, no mundo, ninguém o compreenderia melhor do que eu.

5 comentários:

Michel Domenech disse...

Realmente bom! O suicídio é a personificação da falta de compreensão por parte dos outros. Li em algum lugar, talvez em Camus, que o suicida é o maior amante da vida, porém não encontra a forma certa de viver. Como em teu conto, é possível que o mundo não seja feito para eles ou eles não sejam feitos para o mundo. Creio mais na primeiro proposição; porém, felizmente, o mundo é passível de mudanças, já o mesmo não se dá com a morte perpretada.

vinícius reis disse...

Eu gostei, mas é impressão minha ou o narrador-personagem pode ter colocado o veneno?
De qualquer maneira, muito lindo.

Francieli Hess disse...

Vinícius, pode ser que sim. Não é incrível o modo como os personagens ganham vida por sí próprios?
A liberdade de interpretação é a magia da escrita, afinal.

Vinícius Reis . disse...

De fato, a liberdade da interpretação nos dá espaço pra pensar em coisas que às vezes nem mesmo encaixam na história. Sim, os personagens ganham vida e é difícil, eles são bem temperamentais. Só não sei se isso é tão incrível, porque me dá uma dor de cabeça lascada. Beijo, você é ótima.

mchinaski disse...

Gostei muito do texto!
Bem escrito!