sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Das citações

"Algumas vezes eu fiz muito mal para pessoas que me amaram. Não é paranóia não. É verdade. Sou tão talvez neuroticamente individualista que, quando acontece de alguém parecer aos meus olhos uma ameaça a essa individualidade, fico imediatamente cheio de espinhos - e corto relacionamentos com a maior frieza, às vezes firo, sou agressivo e tal. É preciso acabar com esse medo de ser tocado lá no fundo. Ou é preciso que alguém me toque profundamente para acabar com isso." Caio Fernando Abreu

sábado, 24 de julho de 2010

Pólos opostos

O verdadeiro risco não está nas substâncias tóxicas, a imaginação é o risco. Nem venenos são tão nocivos. Pensar é perigoso: tortura-se o corpo e a alma de uma só vez. E a dor? Bem, isso é relativo. Você pode ingerir uma caixa de sedativos e acabar parando em um plantão de hospital, com a luz bruxuleante e enfermeiras cansadas, que seguirão a risca o procedimento padrão: salvar uma vida vazia, que fará fila com os pobres de espírito logo na outra manhã. Ou, então, pode experimentar passar uma noite em claro, revirando-se na cama e suando frio, com o coração acelerado, olhar perdido no movimento que as sombras fazem na parede. Não há como controlar, os pensamentos lhe dominam com força descomunal, vêm e vão a hora que bem entenderem. Você simplesmente perde o controle da situação.
Olha, não julgo ninguém. Só quero afirmar que o segundo caso dói mais, principalmente quando os dias passam e os pensamentos permanecem. É algo constante, não sei se você entende, mas eles simplesmente não me abandonam. Troco de canal, mudo o rumo da conversa, desligo a música, tomo o triplo de café que deveria; tanto faz, tudo se repete dia após dia. Venho seguindo o mesmo padrão comportamental destrutivo. Nos poucos instantes em que consigo desligar-me de mim mesma, pareço um zumbi desses filmes trash, algo inerte, sem vida. Não sei ao certo se ainda é dor, pode ser apenas o costume de chama-la assim, sinceramente não acho que faça diferença nesse momento. São ciclos, entende? Sei que qualquer dia vou acordar em um outro astral; algo diferente disso, parecido com aquela felicidade enlatada que os comerciais de margarina nos empurram garganta abaixo (e não reclame, entre na fila, saia do outro lado, semelhante aos seus iguais). Posso até gostar desse novo estado de espírito, ele pode até durar, mas logo voltarei a me sentir exatamente assim. De volta ao início, chegando ao final, pulando para os extremos, tudo tende ao exagero.
E por mais que doa, por mais que machuque, eu prefiro dessa forma. Estraçalhando minuciosamente essa tristeza, encontrei-me perdida nesse vazio. It was best like this.

O que quero dizer é...

Palavra, palavra, onde foi que se perdeu? Sinto falta dos nossos laços estreitos, quando só você compreendia e exprimia o que se passa aqui por dentro. Preciso lhe encontrar, em alguma esquina ou dentro de um bueiro qualquer, sinto a sua falta. Pensei que te encontraria no fundo de uma garrafa de plástico, daquelas bebidas que nos arrancam um terço do fígado por gole, porém, meu único encontro foi com uma maldita dor de cabeça, algumas frases desconexas em língua que impossibilita tradução e meia dúzia de problemas para colecionar. Também lhe busquei em alguns litros do meu café amargo, o que me resultou em noites mal-dormidas, olheiras profundas e reflexões arrasadoras (que nunca consegui explicar a ninguém,  sequer compreendi o significado de tudo).
Por favor, volte para mim. Vamos superar essa distância e nos unir novamente, está ficando impossível prosseguir assim. Quando tento me explicar, você foge do meu alcance, deixando-me sozinha a balbuciar discursos incoerentes, tão superficiais quanto as marcas das antigas punições que me auto-infligi. Parece um tanto irracional, mas jamais posso lhe perder. Sou impulsiva demais para deixar que meus atos falem por mim, perder-lhe seria me matar aos poucos, e por dentro. A dor que sinto não se cura com analgésicos.

terça-feira, 6 de julho de 2010

A ti endereçada

Querida Alice;

O mundo real é incrivelmente chato. Os dias são cansativos, as pessoas são monótonas. Sabe, crescer é indubitavelmente fatigante. Se posso lhe aconselhar algo, permaneça exatamente onde está. O Coelho Branco enganou-se, ele não está atrasado, as coisas acontecem a seu tempo e isso é perfeitamente normal.

Certo dia, minha cara, percebi que eu estava fazendo o relógio andar depressa demais. Havia acelerado o ritmo, adiantado os fatos e muito se perdeu por causa desse meu erro. Envelheci meio século, de pensamentos críticos e amargas conclusões sobre a vida, até que pude aprender a lição. Acho que sei quem sou.

Defendo, com unhas e dentes, o seu direito de sentir-se confusa. Seria bom que não nos obrigassem a saber quem somos a todo o instante, afinal, isso é uma variável. Ninguém permanece para sempre igual, minha cara, posso apostar que já não sou a mesma pessoa que era no instante em que sentei para escrever-lhe essas palavras.

Chame o Chapeleiro, deixe-lhe servir o chá. Aproveite para degustá-lo calmamente, afinal, as horas não passam por aí, e sempre haverá um gato disposto a sorrir-lhe cordialmente. Mande minhas saudações à Rainha; jamais esqueça de manter a calma, pois perder a cabeça pode ser realmente perigoso.

Um beijo, Até a vista.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Tententender

Ela queria sentir. Precisava, desejava sentir. E a vontade era tamanha, que, então, imaginou. Projetou em sua mente uma lâmina, afiada, reluzente; direcionou-a contra a própria carne, para a esquerda, para a direita. Cortou-se lentamente, com um sorriso um tanto doentio, e era quase como se fosse real.

Nos seus pensamentos, o sangue escorria. Calmo, passivo, ao mesmo tempo que revirava o seu mundo. Ah, era assim que tinha que ser. Sim, ela também podia sentir. Num fluxo monótono, aquele líquido rubro e pastoso escorria, formavam-se gotas que pingavam no chão, esvaindo-se para completar o vazio que a havia entediado.
Depois de um tempo, imaginar perdeu a graça. Abrindo lentamente os olhos, estava de volta ao seu mundo, tudo continuava igual, nada saíra do lugar.



Algum tempo depois, ao olhar para o próprio pulso, viu um pequenino ponto vermelho, que, de tão teimoso, escapara de sua imaginação para ali se instalar, zombeteiro.  Digam-me, senhores: a realidade é sempre aquilo que enxergamos?

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Daquilo que calei

Minhas palavras não ditas estão enfileiradas e agora sufocam-me aos poucos. Saltam pelos meus poros, emergem em doses insistindo para que alguém as ouça. Posso sentir aquele velho embrulho no estômago, o gosto amargo das expressões caladas, que sobe pela garganta estrangulando-me. Gostaria de poder gritar, mas a náusea das frases reprimidas me impede de ousar sussurar teu nome ao vento.
Quando sentimentos omitidos insistem em vir a tona, não há escapatória. Por mais que eu vomite desculpas verborréicas, não encontro meios de compensar aquilo que se perdeu, e ardo, assim, no desejo insano de fazer voltar o tempo. O que passou, ficou para trás; não tenho controle sobre o que virá daqui em diante. E nesse desatino, enquanto aguardo, sei que perderei a pouca razão que ainda me resta, engasgando com o sabor pútrido daquilo que sempre neguei.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Um último discurso

- Você sabe como é morrer?
Foi assim que começou. Ele me perguntava aquilo com uma paciência resignada, um certo tom de monotonia na voz. Era sempre do mesmo jeito, suas perguntas pegavam-me de surpresa, jamais encontrei as respostas corretas. Limitei-me a fitá-lo nos olhos e balançar a cabeça, negativamente. Senti um ímpeto de curiosidade, pude ver, então, que ele escolhia as palavras enquanto tragava seu cigarro, intercalando-o com goles de uma bebida qualquer. Depois de uma longa pausa, acrescentou:
- É como estar em meio à fumaça de um incêndio: primeiro, espalha-se como uma névoa, um pequeno incômodo, que acreditamos logo dissipar-se. Este é o primeiro erro, pois, com o passar do tempo, ela se torna densa, e logo não se pode mais respirar.
Ele falava olhando para o nada, sorrindo com o canto da boca, como se contasse uma piada, ou sei lá. Tudo aquilo me assustava, mas, de certo modo, precisava ouvir mais; queria chegar até o fim. Após alguns instantes, olhou-me fixamente e continuou:
- Instintivamente, nos abaixamos até o ponto onde há uma camada menos espessa. Evitamos olhar para cima, forçamo-nos a acreditar que aquela inquietante sensação de falta de ar irá embora com o tempo. Ah, minha cara, nós somos tão tolos... Quando nos damos conta, estamos rastejando rente ao chão, a cortina de fumaça envolveu-nos completamente, abafando nossos gritos, nossos pedidos agonizantes de ajuda. Sufocamos de forma lenta, invisíveis aos olhos do mundo. Inalamos toda essa imundície cinzenta, e, devaneando pensamentos pútridos, aprendemos desde cedo a morrer sozinhos.
Dito isso, calou-se. Ele levantou, atirando uma nota amassada no balcão e seguiu em direção à saída. Ainda na porta, virou-se, encarando-me com uma expressão cínica, como se pudesse ler meus pensamentos. Sorriu, um riso triste e sem vida, que até hoje me faz acordar no meio da noite, suando frio.
Nunca mais o vi depois disso; soube, meses mais tarde, que ele fora encontrado morto, naquela mesma noite. Alguns dizem que foi por envenenamento, algo propositalmente misturado a uma dose de alcool, embora a causa seja o de menos, uma vez que não anula o óbito em si.
Certas vezes, antes de dormir, penso que ele sabia de toda a verdade, sempre soube. Hoje posso perceber claramente: por trás daquele olhar melancólico, havia a tácita certeza de que, no mundo, ninguém o compreenderia melhor do que eu.